domingo, 16 de junho de 2013

Nada disso é real, embora pareça ser

Apesar de parecer uma realidade, este mundo material não passa de uma ilusão. De fato, o Bhagavatam compara esta admirável criação da energia externa do Senhor a uma miragem no deserto onde não existe água, embora, pelo efeito da miragem, pareça existir. A realidade, da qual este mundo é meramente uma sombra, está no mundo espiritual, e a menos que nos rendamos aos pés do lótus do Senhor seremos incapazes de vislumbrá-la...

Nesse momento, estou a bordo de uma grande aeronave que voa a uma altura impressionante e percorre centenas de quilômetros por hora. O sol acaba de se por e, à medida que sua luz se esconde, torna-se possível contemplar dezenas das milhões de estrelas do céu. O voo está lotado, os comissários passam com os carrinhos de mão, oferecem água, salgadinhos... – mas nada disso é real, embora pareça ser. Há alguns minutos tudo estava silencioso. Ainda estava claro e eu espiava pela janela o deslocamento apressado das nuvens no céu, enquanto notava, na terra, ao longe, o crescimento de vários tipos de vegetação. Bastou que as caixas de som divulgassem o início do serviço de bordo para que a paixão tomasse conta da cena, fazendo com que os passageiros – homens de negócios, famílias em férias, casais enamorados – se agitassem. Na cabine, agora, depois de acionarem o piloto automático, provavelmente os pilotos se deliciam com seu lanchinho vip. Ó, quão poderoso Krishna é! Quão inconcebíveis Suas diferentes energias são! Quão obtusa é a nossa mente que não percebe a manifestação cósmica e suas variedades como simples interações dos três modos da natureza! Quão grande é nossa cegueira que não nos deixa ver o verdadeiro piloto por trás de tudo!...

Embora todas as coisas mencionadas pareçam realidades tangíveis, num próximo momento tudo se evaporará exatamente como as nuvens do céu. Ou seja, a aeronave e seus pilotos, tripulantes e passageiros, os homens de negócios e seus negócios, este computador de mão, meus dedos, que com a ajuda das teclas procuram registrar ideias, assim como eu mesmo – nada disso é real, embora pareça ser. Ou, se preferir, tudo é tão “real” quanto as nuvens que contemplo no céu. É devido a ela que existe a chuva e, porque chove, existe esta grande abundância de vegetação efêmera, embora, em última instância, a nuvem, a chuva e a vegetação, inevitavelmente desaparecerão, assim como esta aeronave, seus tripulantes, este computador e suas teclas, eu, meus dedos e tudo o mais. Somente o céu permanecerá, com sua incontável variedade de luminárias.

Sri Krishna, o Absoluto, ou summum bonum, pode ser comparada ao céu, pois somente Ele permanece eternamente. As outras coisas, que não diferem em nada das nuvens passageiras, desaparecerão uma a uma. E, assim como Sri Krishna permanecerá, permanecerão também os verdadeiros eus, ou almas espirituais, que, por serem partes integrantes Dele, se comparam às luminárias do céu.

Enquanto o homem comum se atrai unicamente pelas nuvens temporárias; os introspectivos, ou sadhus, colocam seu interesse no céu eterno e sua variedade de luminárias. A conclusão é que, se queremos aprender sobre aquilo que é real, que faz parte da Verdade Absoluta, devemos buscar a companhia destes sadhus. Ouvindo-os, as amarras que nos prendem a diversas afeições pelas nuvens ilusórias e suas criações serão cortadas e o caminho da liberação que nos conduz ao reencontro com o Absoluto irá se descortinar diante de nós. Caso contrário, sob o efeito ameaçador da sombra da verdadeira realidade, permaneceremos desnorteados, sem compreender quem é o verdadeiro piloto por trás de tudo.
 
– Belém, PA, 07/06/2013

terça-feira, 21 de maio de 2013

Casando-se “por dentro”


Jung falava que dentro de todo ser humano existem dois princípios: o masculino e o feminino. Ao casar-se “por dentro”, a razão estaria se unindo ao sentimento, o que produziria a desejada unidade perfeita. Expandido essa ideia, alguns pensadores acreditam que esses dois princípios se dividem também na forma de Ocidente e Oriente, e que, portanto, um casamento entre eles seria muito bem vindo.
O Ocidente representaria o aspecto masculino, o dominador; enquanto o Oriente, a Índia em questão, o feminino, o acolhedor. Esse ponto de vista ganha força ao constatarmos o impacto que o sistema industrial ocidental provoca na Índia. Ou seja, quando separada da visão do sagrado, a racionalidade exploratória ocidental mina a percepção que todo ser humano leva dentro de si da presença divina na natureza e nos homens. Assim, quando desequilibrado ou pervertido, o lado masculino (purusha) representa o aspecto agressivo, controlador, dominador; enquanto o feminino, o ingênuo, o inocente, o extremamente dependente.
Não há como negar que, com sua mentalidade excessivamente racional, o Ocidente tem produzido um povo bastante fechado em seu próprio ego. Quem duvida disso deve observar seus gestos ríspidos e desajeitados, sua maneira monótona de se vestir, sua ausência de cordialidade. Em contrapartida, o formigueiro alegre e abundante do povo indiano, com seus turbantes e saris multicolores, lembram a beleza variegada e natural de um jardim florido... Isso porque a Índia tem um jeito próprio de reduzir ao mínimo as necessidades da vida. A maioria usa uma camisa e o chamado dhoti – um simples pano da cintura até os pés; enquanto as mulheres se vestem de sari e uma miniblusa para cobrir os seios, sendo que essa peça é relativamente recente e frequentemente dispensável para as mais velhas. Eles pensam, “Para que uma casa, uma vez que é possível viver numa caverna ou abrigar-se junto a um terraço de um Templo?”...
 No caso de se viver numa casa, “Para que mobília e fogão, uma vez que é possível dormir numa esteira e, junto ao chão, acocorar-se e fazer um simples foguinho para cozinhar?”. Uma existência tão fora da nossa realidade que antes de visitar a Índia eu não teria julgado possível. Reduzindo a vida a uma simplicidade absoluta, parece que eles vivem inteiramente desligados das coisas do mundo, dependendo da providência divina para as necessidades básicas como comida, abrigo e vestuário. Certamente, era esse tipo de pobreza de espírito que Jesus se referia em seu célebre Sermão da Montanha. Pobreza como desapego do mundo. Castidade como desapego da carne. Obediência como desapego do falso ego. Renúncia do 'eu' e do 'meu'.
É claro que nem todos os indianos são assim, mas não há como negar que a cultura indiana, de um modo geral, exala muito mais desapego e despreocupação. O mais curioso é que, embora tenha como característica a renúncia ao mundo, o hinduísmo construiu templos de arquiteturas avançadíssimas, cobriram as paredes das cavernas com pinturas refinadas, construíram grandes balneários (kundas) e outras belezas incomparáveis e fantásticas! Isso porque, não importa possuir ou não objetos materiais, contanto que não se esteja excessivamente preso a eles e não se tenha uma dependência vital deles. Em outras palavras, a verdadeira vairagya, ou renúncia, nunca se opõe à missão de servir ao mundo. Portanto, o verdadeiro renunciado, estando livre do ahankara, falso ego, assume o compromisso de servir o mundo, pois, devido à sua visão espiritual, ele enxerga as coisas como elas são e sabe usá-las como devem ser usadas. Ele é um atmarama, uma alma comprazida em si mesmo, devido à sua união com a paramatma, a Alma Suprema, que habita em seu interior.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Atitude submissa

Além de supervalorizar os trabalhos de pesquisa e a erudição, o mundo acadêmico ocidental dá votos de confiança exagerados aos poderes dos indivíduos. Mas, discordando dos métodos acadêmicos atuais, o sistema atemporal védico – que não confia em absoluto na especulação mental e no uso dos sentidos limitados e imperfeitos – recomenda enfaticamente que o estudante procure um mestre espiritual tattva-darsi (vidente da Verdade), e, numa atitude submissa, se renda a uma disciplina espiritual. É claro que, para os ouvidos ocidentais, a palavra “submissão” não soa muito bem, já que, do lado de cá, sempre fomos inspirados a privilegiar os métodos e abordagens apoiados na especulação mental. Assim sendo, o método “submisso” no qual os estudantes obtêm conhecimento pelo processo que descende de mestre a discípulo é frequentemente interpretado como restrição dogmática ou doutrinária – isso quando ele não recebe a acusação de repressor da inteligência natural.
Mas, além de agitar o falso orgulho, qual seria o verdadeiro problema em se aceitar a ajuda de preceptores que, além de terem se dedicado a um profundo aprendizado, se submeteram também a rigorosas disciplinas espirituais e foram devidamente treinados na formação de caráter?...
Para dizer a verdade, nem a educação universitária consegue fugir da regra da submissão, pois, acaba dependendo também dela, já que todo aluno acaba se submetendo às diretrizes de um professor. Eu me lembro de uma palestra de Srila Acaryadeva, meu preceptor (que, certamente, é um autêntico tattva-darsi), em que ele dizia que um dos mais graves problemas da educação universitária é que eles inventaram um jogo com regras caprichosas e arbitrárias que chamam arrogantemente de método científico. O futebol, por exemplo, autoriza somente o goleiro a pegar a bola com as mãos, embora, no vôlei e no handebol, as regras sejam bem diferentes. Do mesmo modo que, com visão ampla, seria inaceitável afirmar que o futebol é o único esporte verdadeiro, seria igualmente pretensioso e inadmissível considerar o método acadêmico como o único científico – uma vez que este método não passa da criação de um simples jogo com suas próprias regras.
Em outras eras, onde a atmosfera era bem mais favorável, o “jogo” era “jogado” por filósofos e cientistas muitíssimo mais inteligentes, que partiam da premissa de que a busca por respostas e explicações não era diferente da busca por Deus, a origem suprema. Portanto, seu “jogo”, com regras muito mais avançadas e contando com a ajuda de fontes espirituais, era muito mais interessante. Por outro lado, por ater-se nas experiências empíricas, o atual modelo acadêmico é um completo fracasso quando tenta perceber as verdades além do alcance do ser humano. De fato, é uma ingenuidade absurda acreditar que Deus e Suas verdades superiores poderão ser compreendidos através da manipulação e controle por parte do cientista. Definitivamente, somente um fanático petulante acreditaria na possibilidade de fazer de Deus sua própria cobaia! Assim, o método empírico só poderá ajudar – quando muito – a compreendermos coisas relativas ao universo material. Entretanto, além desse conhecimento material relativo, existe o conhecimento transcendental que diz respeito às coisas situadas além do nosso limitado campo de visão. As escrituras védicas, portanto, revelam informações que são inconcebíveis para os nossos sentidos ou raciocínios materiais, mas que, através das práticas de yoga e meditação – uma metodologia científica espiritual – podem ser realizadas e percebidas diretamente.
Basta que o estudante receba orientação de um guru tattva-darsi, o que torna desnecessário o trabalho de pesquisa. Ao aceitar a iniciação de um guru, que não somente acredita no que está ensinando, mas o pratica fielmente, um novo campo de conhecimento se descortina diante do discípulo, pois é bem mais fácil compreender as escrituras por ouvir instruções de alguém que esteja pleno de realizações pessoais do que por estudar por conta própria a palavra escrita. Além disso, o guru é um representante vivo da sucessão discipular e traz consigo os ensinamentos dos mestres antecessores. Na verdade, o que qualifica o guru não é seu conhecimento acadêmico ou seu brilho intelectual, mas sua retidão de caráter e sua posição acima do desfrute egoísta e sua condição de liberdade da escravidão das demandas corpóreas. Convicto de que o conhecimento espiritual traz as verdadeiras soluções para os problemas (que são sempre de ordem material), ele pessoalmente leva uma vida bem-aventurada em união com o Supremo e todas as suas instruções são compatíveis tanto com o seu comportamento quanto com os ensinamentos originais dos Vedas. É muito raro encontrar tal grande alma.

Além das verdades relativas

“Como surgimos, como fomos criados?” – foi assim que um senhor idoso da plateia mostrou uma curiosidade tipicamente científica. Antes mesmo de eu dar início a minha resposta, ele falou sobre sua ideia da nossa ancestralidade dos macacos, das bactérias evolucionistas... Meu Deus! Onde foi que eu errei? Meu discurso, que era tão ingênuo, girava em torno das qualidades da alma: aquela que nunca nasce, nunca morre, é eterna e primordial...
Respondi-lhe inicialmente dizendo que só poderia falar de criação do corpo material, pois, segundo a Gita, a alma é sempre existente e nunca é criada. Mas, ele insistiu: “Somos produtos do encadeamento de reações químicas e, pela influência de leis mecânicas cegas, nos desenvolvemos...”. É claro que demonstrei respeito pela sua ideia de ‘sopa cósmica primordial’, mas era imperativo que eu recuperasse a atenção da plateia que, calada, esperava alguma luz vinda de mim. Foi então que me atrevi: “Para mim, muito mais atraente do que a pergunta ‘como fomos criados’ é o questionamento filosófico ‘por que e para que existimos’, já que ele abre um leque altamente inspirador, pois pressupõe que por trás de tudo pode haver um legislador consciente que tem um plano primoroso e perfeito. Por outro lado, a questão ‘como surgi nesse mundo’ pede respostas meramente químicas, tipo ‘originalmente, éramos nada mais que um ovinho no ventre de nossa mãe, um tipo de feijãozinho, etc.’. Será que podemos nos contentar com a explicação de que não passamos de um ser mecânico, físico, uma máquina?”. Ao sentir que a maioria das pessoas voltara a relaxar em suas poltronas, parafraseei o grandioso Einstein: “Não posso acreditar que Deus esteja praticando um simples jogo de azar com o Universo!”.
Ora, as verdades materiais são relativas: o que hoje é verdade, amanhã deixará de ser, o que se aplica para uns não se aplica para outros. Verdades relativas se fundamentam no corpo, que nem sempre existiu e inevitavelmente deixará de existir. Tomemos o exemplo da posição de uma pessoa que em relação ao seu filho é pai, mas em relação a seu pai é filho. Do mesmo modo, o conceito de amigo, inimigo, esposo, patrão, empregado, controlador, controlado, etc., também são relativos. Por isso, o início do Vedanta-sutra é marcado pela seguinte orientação: “Vá além dessas verdades relativas e busque o brahman, o espírito – aquilo que para todos e em qualquer lugar sempre permanecerá verdade”. Segundo a Gita, esse brahman somos nós, o verdadeiro eu espiritual, a natureza absoluta que, independentemente da cobertura corpórea, da circunstância, do lugar ou do tempo, permanece inalterável. Ou seja, somos a alma não-nascida, primordial e sempre existente
(continua).