quinta-feira, 29 de novembro de 2012

“Não há mais nada de novo para ser dito” ou “Leitura Ruminativa”

Eu estava palestrando quando percebi a chegada de um devoto que, mesmo estando à porta do Templo, preferiu não entrar. Permanecendo calçado, o dito cujo sorriu para mim, e enquanto dava uma breve olhada nas Deidades, juntou suas mãos em leve sinal de respeito, e sem entrar na sala e nem mesmo se curvar reverencialmente para Elas, se retirou.
Enquanto eu continuava a minha preleção, não consegui deixar de julgá-lo, “Que descaso com as Deidades!”, pensei eu, “Como ele nem coloca sua cabeça no chão para Jagannatha! Este devoto está todo errado!”, e continuei a comentar sobre o último verso falado por Krishna na Bhagavad-gita, quando Ele pergunta a Arjuna, “Você ouviu atentamente o que eu disse?”.
Um minuto depois chega mais um devoto. Este, sim, faz tudo certo: tira os calçados, entra na sala do Templo, faz dandavat para a murti de Srila Prabhupada, para as Deidades e para o vasinho de Tulasi. Olhando para mim e balançando a cabeça como se pedisse licença, ele atravessa a sala do Templo e desaparece pelos aposentos internos até voltar depois de alguns minutos com roupas devocionais, tilaka no corpo e pronto para fazer o puja no altar. Como o assunto da palestra girava em torno da importância da atenção às palavras de Srila Prabhupada registradas em seus maravilhosos significados, não pude resistir e acabei me valendo dos exemplos dos dois devotos que acabamos de mencionar. Ou seja, não é verdade que desejamos intensamente que os textos de Srila Prabhupada esmaguem o nosso materialismo, espantem nosso sentimentalismo, exorcizem o nosso impersonalismo? Então, por que, apesar do contato constante com seus escritos sagrados, isso não ocorre plenamente?... Será que a mesma postura de descaso que aquele “devoto todo errado” teve para com as Deidades não estamos tendo também para com os textos de Srila Prabhupada?...
Em outras palavras, há definitivamente duas formas de leitura: a passagem rápida e superficial sobre um texto ou a leitura cuidadosa e detalhada, um mergulho profundo no seu significado filosófico. A primeira classe de leitura – que não passa de uma simples busca por informação – poderia ser comparada ao devoto que abriu despretensiosamente a porta da sala do Templo, deu uma breve e desinteressada espiadela e, com a mesma frieza que chegou, saiu dela sem nenhuma atitude de serviço transcendental. A segunda, no entanto – a que tenho chamado de “leitura ruminativa” –, é totalmente diferente da postura de alguém que simplesmente abre o livro. Comparo esta ao segundo devoto que não apenas entrou no Templo, mas executou os devidos rituais purificatórios e se qualificou para adorar o Senhor.  Ou seja, por ser feita com uma atitude de total autoentrega ao texto, este humor de leitura permite que nos adentremos no mundo de Srila Prabhupada – um mundo místico onde o nosso eu pode se expandir ao ponto de se integrar ao significado transcendental. Uma boa maneira de praticarmos a “leitura ruminativa” dos livros de Prabhupada é entendermos claramente que os “Significados Bhaktivedanta” não são em absoluto diferentes dele, assim como o próprio Srila Prabhupada escreveu a um discípulo numa carta em outubro de 73, "As instruções dadas em meus livros devem ser aceitas como instruções pessoais. Quando lemos o Bhagavad-gita Como Ele É devemos entender que estamos recebendo instruções pessoais de Krishna. Não há barreiras físicas quando se trata de assuntos espirituais".  Em outras palavras, a nossa atitude ao lermos não pode estar limitada meramente a uma busca intelectual por informações, mesmo que sejam espirituais. E mesmo se, em nossas leituras, tivermos interesse em propagar tais informações imaculadas, ainda assim estaria faltando algo. Ou seja, “ruminar” diante do texto não significa apenas assimilar as instruções de Srila Prabhupada e repeti-las aos quatro ventos, mas introjetá-las e deixar com que elas criem uma verdadeira revolução interior. É claro que, de qualquer modo, ler os livros de Srila Prabhupada é sempre bom, mas certamente devemos mergulhar na leitura com o mesmo entusiasmo que teríamos diante da oportunidade de termos um darshan pessoal com Sua Divina Graça! De fato, qual a diferença entre estarmos em contato pessoal com ele ou mergulharmos em seus textos? Segundo a natureza da plataforma transcendental, a respostas seria, “Nenhuma!”. Caso contrário, o que significaria as seguintes palavras proferidas por ele: “Eu nunca morrerei. Viverei para sempre em meus livros"? Ou seja, se queremos que a potência de suas palavras penetre no âmago dos nossos corações, devemos estar totalmente ávidos pela sua associação, pois as escrituras dizem que um breve momento de verdadeira associação com um maha-bhagavata como ele pode nos promover à perfeição máxima da vida! Isso significa que não há necessidade de nos preocuparmos tanto com a quantidade de textos a serem lidos. Devemos, antes disso, observar a qualidade do nosso estado de consciência, pois a leitura feita de forma profunda – mesmo que seja breve – pode desencadear em nós uma transformação interna maravilhosa!
"Em meus livros a filosofia da consciência de Krishna é completamente explicada, de modo que, se houver algo que você não entenda simplesmente leia novamente e repetidas vezes. Por ler diariamente este conhecimento será revelado a você... A melhor maneira de me agradar é lendo meus livros e seguindo as instruções contidas neles”, escreveu ele numa carta em novembro de 74. A literatura de Srila Prabhupada é tão mágica que é capaz de nos oferecer frescor inesgotável e vida espiritual abundante a cada leitura. Só nos resta, portanto, nos aproximarmos dela com uma atitude honesta de oração e com a devida reverência e  humildade. Para terminar, podemos “ruminar” um texto de Srila Prabhupada, quando, ao retornar à Vrindavana já com a saúde precária em maio de 1977, ele disse num tom profundo e grave: "Não há mais nada de novo para ser dito. Tudo que tinha a dizer já está dito em meus livros. Agora procurem compreendê-los e continuem seus esforços".

São Luis do Maranhão, 29/11/2012

sábado, 10 de novembro de 2012

Serei eu um membro da Igreja dos “Mornos”?


Não, não digitei errado. Não estou me referindo aos Mórmons, aqueles da “Igreja de Jesus Cristo dos santos dos últimos dias”. Estou mesmo falando dos mornos – aqueles que não são nem quentes, nem frios. Na Sagrada Bíblia (Apocalipse 3.15-16), o Senhor Krishna (por que não?) fala deles: “Conheço tuas obras: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Mas, porque és morno, estou para vomitar-te de minha boca”. Portanto, sejamos mais radicais! (etimologicamente falando, é claro). Radical significa firmar-se nas raízes, sem convicções epidérmicas. Significa solidez na postura, na decisão tomada. Radicalidade é uma grande virtude, a virtude de romper com as próprias barreiras e dirigir o olhar para outras possibilidades, mas agarrado às raízes. E o tal do “caminho do meio”? Não confundir caminho do meio com caminho da mediocridade. Limite sim. Mas, será que o limite está sempre exatamente no meio? O grande sábio Confúcio vem em nosso socorro: “Eu sei porque o meio-termo não é seguido. O homem inteligente ultrapassa-o, o medíocre fica aquém”.
Seria um “morno” um medíocre? Aquele que, mesmo entendendo a importância da vida espiritual (e até se proponha a segui-la), acaba recuando diante dos mínimos obstáculos? Seria aquele que é carente de convicção, de determinação, de firmeza? Ou ainda aquele que, mesmo sendo adepto de algumas práticas devocionais, é apático demais para transpor as dificuldades do dia-dia, pois, de fato, não coloca o coração em suas atividades?
Srila Prabhupada disse que a vida espiritual é uma declaração de guerra contra maya. Assim sendo, talvez o morno se enquadre na categoria daquele que não tem suficiente coragem de assumir esta batalha, que não odeia o próprio pecado dentro dele. Quanto a isso, podemos recorrer ao Sri Upadesamrita, onde Srila Rupa Gosvami prevê que uma das nossas mais difíceis batalhas pessoais é certamente contra a nossa tendência ofensiva de cantar a japa ou ler os livros de Srila Prabhupada de forma mecânica (niyama-agraha). Um praticante mecânico é certamente aquele que carece de fervor e, portanto, é morno. Desse modo, suas práticas espirituais são fracas demais para conquistar seus inimigos internos.
Não é difícil reconhecer quando a “mornice” ganha terreno dentro de nós. Nesse momento, surge a apatia, a desmotivação, o descontrole dos sentidos e a empatia ao modo de vida materialista – que é a soma de tudo isso. Mas, quando somos socorridos pelo "fervor devocional" isso não pode acontecer, pois ele vem para nos lembrar de que nada é mais prazeroso do que as discussões filosóficas transcendentais entre devotos, nada é mais interessante do que o estudo detalhado dos livros de Srila Prabhupada, nada é mais gratificante do que uma participação entusiasta nos kirtanas e programas espirituais!
Outra característica da “mornice” é que ela faz com que suas vítimas prefiram falar mais de si mesmo do que trocar experiências verdadeiramente transcendentais de vida. Assim, nas “Igrejas dos Mornos”, as famílias Vaishnavas parecem mais um grupo de estranhos, onde irmãos, sobrinhos e tios espirituais mal cruzam suas histórias, e onde o sentido divino da família maior de Srila Prabhupada é infelizmente substituído por divisões, exclusões e discriminações que podem chegar a patamares inaceitáveis. Quando a “mornice” sobrepõe o “fervor devocional”, ela vem para impedir que o devoto transforme as informações das escrituras em conhecimento prático e experiências geradoras de amor e confiança e, consequentemente, em entusiasmo. Assim, os mornos são, em sua maioria, repetidores de informações – uma massa que teme a arte da crítica saudável, da autocrítica e da dúvida, e, portanto, mal interpretam aqueles que gostam de pensar. Ela, a “mornice”, nos faz viver ansiosos, estressados, deprimidos e até cria condições para o surgimento de doenças emocionais, típicas de não-devotos. Mas, quando, pela graça do guru e de Krishna, o fervor devocional se impõe sobre ela, acompanhado dele vem o desapego, o controle da mente, a lembrança dos maravilhosos exemplos dos acharyas do passado, a meditação nas lilas de Srila Prabhupada e nas suas instruções infalíveis e espiritualmente revigorantes.
“Devia ter amado mais, ter chorado mais (...) devia ter arriscado mais e até errado mais”.
(Manaus, AM, 10/11/2012)

sábado, 3 de novembro de 2012

“Sejamos adeptos do ócio!”

Já havia ouvido falar sobre a importância do ócio na vida do indivíduo. Ao pesquisar me deparei com alguns sinônimos, tais como “repouso, quietação e lazer”, que podem ser considerados positivos e sob a influência da bondade; enquanto outros, como “preguiça, indolência, moleza”, são certamente negativos e inspirados pela ignorância. Entendo que estes diferentes significados de ócio se embolam de tal maneira que, dependendo do contexto, pessoas moles e indolentes podem ser confundidas como estando “na bondade”, enquanto outras, quietas e em repouso, interpretadas como estando “na ignorância”, etc.
De qualquer modo, a palavra ócio tem seu lado bastante nobre – pelo menos em sua origem no latim –, pois significa “o tempo ocupado com coisas que realmente importam”. Por outro lado, a palavra negócio, que vem também do latim negotium, serve para indicar “as ocupações com coisas que negam o valor da vida”, o que, talvez, são chamadas por nós como “trabalhos fruitivos”. Ócio é, portanto, o tempo gasto na autorrealização espiritual, o tempo precioso em que podemos ficar efetivamente por conta de nós mesmos. Por isso, entre os gregos e os romanos, o ócio era colocado na parte superior da escala de valores, o que nos leva a deduzir que um verdadeiro brahmana deve ser adepto ao ócio, ou seja, de uma vida espiritualmente contemplativa, voltada a smaranam, reflexão – prática esta sob a influência da bondade, e que ajuda o indivíduo a reduzir os riscos da vida espiritual.
Lembra que, no início deste texto, citamos o “lazer” como uma das traduções de ócio? Essa tradução nos remete à Gita, quando Krishna explica que se pode controlar a mente “regulando o comer, o dormir, o trabalhar e o recrear (vihara)”. “Assim”, acrescenta o Senhor, “pode-se mitigar as dores da existência material” (G. 6.17). Este conceito de equilibrar o trabalho com o lazer apresentado por Krishna combina totalmente com o conceito de ócio positivo. Não há como negar – inclusive dentro do serviço devocional – que as pausas são momentos ativos e precisamos delas para nos revigorar, para nos descontrair, para respirar melhor. Quanto a isso, podemos citar a música como bom exemplo: ela tem compasso, cresce, diminui, abre espaços para o improviso e também tem suas pausas, as quais não devem ser entendidas meramente como ausência de som, mas como um elemento genuinamente criativo, que permite a respiração rítmica da música. Para não falar do nosso corpo que faz pausa entre o inspirar e o expirar, os universos também têm seu ritmo.  Depois de serem criados, mantidos e aniquilados há uma pausa na engrenagem cósmica e eles se tornam imanifestos por um período. A ideia é que a pausa é absolutamente natural e sagrada e, por isso, o ciclo dos dias e das noites tem orientado as pessoas tanto ao longo dos milênios quanto no dia-dia. Temos uma necessidade vital de interrompermos nossas atividades e tomarmos fôlego para, assim, restaurar nossas forças, acalmarmos a mente e desfrutarmos mais do tempo, o que nos dá plena disposição para gerar novas forças e reiniciarmos novas atividades. Portanto, no contexto da condição humana, trabalho e folga se completam e um ajuda a recompor o outro.
Antes que alguém pergunte, é claro que eu concordo com a importância de se fazer algo prático e produtivo, mas o dia não tem vinte e quatro horas? Ou seja, se formos organizados, há tempo de sobra para, diariamente, deixar que o ócio faça parte de nossa vida. Este tempo é o nosso sadhana, nossas práticas devocionais, especialmente as nossas duas horas diárias da japa, que é o que realmente importa.
Não tenho medo de me confessar: às vezes, canto japa sem exercer a menor pressão sobre mim, sem tentar obstinadamente ouvir cada sílaba do mantra, sem tentar não pensar em nada. E o interessante nisso é que sinto que, em certos momentos, isso me faz muito bem. Cantar caminhando na beira da praia e se deliciando com a sensação agradável que a água produz no contato com o corpo é um tipo de ócio que me faz muito bem, ou me sentar na varanda de Vrajabhumi e esquecer o relógio e mergulhar na leitura do Sri Chaitanya Charitamrta (talvez seja mais ou menos isso que Krishna quer dizer com “inação na ação”).
Esse tempo transcendentalmente ocioso, quando gasto com leituras devocionais e com o canto do santo nome, nos leva a ponderar e rever conceitos. Portanto, esse tempo é mais sagrado e nunca deve ser visto como perdido, pois de que nos adiantaria caminhar rapidamente, mas pelo caminho errado?

(Shantipur Escola, Visconde Mauá, MG, 03/11/2012)