quinta-feira, 29 de novembro de 2012

“Não há mais nada de novo para ser dito” ou “Leitura Ruminativa”

Eu estava palestrando quando percebi a chegada de um devoto que, mesmo estando à porta do Templo, preferiu não entrar. Permanecendo calçado, o dito cujo sorriu para mim, e enquanto dava uma breve olhada nas Deidades, juntou suas mãos em leve sinal de respeito, e sem entrar na sala e nem mesmo se curvar reverencialmente para Elas, se retirou.
Enquanto eu continuava a minha preleção, não consegui deixar de julgá-lo, “Que descaso com as Deidades!”, pensei eu, “Como ele nem coloca sua cabeça no chão para Jagannatha! Este devoto está todo errado!”, e continuei a comentar sobre o último verso falado por Krishna na Bhagavad-gita, quando Ele pergunta a Arjuna, “Você ouviu atentamente o que eu disse?”.
Um minuto depois chega mais um devoto. Este, sim, faz tudo certo: tira os calçados, entra na sala do Templo, faz dandavat para a murti de Srila Prabhupada, para as Deidades e para o vasinho de Tulasi. Olhando para mim e balançando a cabeça como se pedisse licença, ele atravessa a sala do Templo e desaparece pelos aposentos internos até voltar depois de alguns minutos com roupas devocionais, tilaka no corpo e pronto para fazer o puja no altar. Como o assunto da palestra girava em torno da importância da atenção às palavras de Srila Prabhupada registradas em seus maravilhosos significados, não pude resistir e acabei me valendo dos exemplos dos dois devotos que acabamos de mencionar. Ou seja, não é verdade que desejamos intensamente que os textos de Srila Prabhupada esmaguem o nosso materialismo, espantem nosso sentimentalismo, exorcizem o nosso impersonalismo? Então, por que, apesar do contato constante com seus escritos sagrados, isso não ocorre plenamente?... Será que a mesma postura de descaso que aquele “devoto todo errado” teve para com as Deidades não estamos tendo também para com os textos de Srila Prabhupada?...
Em outras palavras, há definitivamente duas formas de leitura: a passagem rápida e superficial sobre um texto ou a leitura cuidadosa e detalhada, um mergulho profundo no seu significado filosófico. A primeira classe de leitura – que não passa de uma simples busca por informação – poderia ser comparada ao devoto que abriu despretensiosamente a porta da sala do Templo, deu uma breve e desinteressada espiadela e, com a mesma frieza que chegou, saiu dela sem nenhuma atitude de serviço transcendental. A segunda, no entanto – a que tenho chamado de “leitura ruminativa” –, é totalmente diferente da postura de alguém que simplesmente abre o livro. Comparo esta ao segundo devoto que não apenas entrou no Templo, mas executou os devidos rituais purificatórios e se qualificou para adorar o Senhor.  Ou seja, por ser feita com uma atitude de total autoentrega ao texto, este humor de leitura permite que nos adentremos no mundo de Srila Prabhupada – um mundo místico onde o nosso eu pode se expandir ao ponto de se integrar ao significado transcendental. Uma boa maneira de praticarmos a “leitura ruminativa” dos livros de Prabhupada é entendermos claramente que os “Significados Bhaktivedanta” não são em absoluto diferentes dele, assim como o próprio Srila Prabhupada escreveu a um discípulo numa carta em outubro de 73, "As instruções dadas em meus livros devem ser aceitas como instruções pessoais. Quando lemos o Bhagavad-gita Como Ele É devemos entender que estamos recebendo instruções pessoais de Krishna. Não há barreiras físicas quando se trata de assuntos espirituais".  Em outras palavras, a nossa atitude ao lermos não pode estar limitada meramente a uma busca intelectual por informações, mesmo que sejam espirituais. E mesmo se, em nossas leituras, tivermos interesse em propagar tais informações imaculadas, ainda assim estaria faltando algo. Ou seja, “ruminar” diante do texto não significa apenas assimilar as instruções de Srila Prabhupada e repeti-las aos quatro ventos, mas introjetá-las e deixar com que elas criem uma verdadeira revolução interior. É claro que, de qualquer modo, ler os livros de Srila Prabhupada é sempre bom, mas certamente devemos mergulhar na leitura com o mesmo entusiasmo que teríamos diante da oportunidade de termos um darshan pessoal com Sua Divina Graça! De fato, qual a diferença entre estarmos em contato pessoal com ele ou mergulharmos em seus textos? Segundo a natureza da plataforma transcendental, a respostas seria, “Nenhuma!”. Caso contrário, o que significaria as seguintes palavras proferidas por ele: “Eu nunca morrerei. Viverei para sempre em meus livros"? Ou seja, se queremos que a potência de suas palavras penetre no âmago dos nossos corações, devemos estar totalmente ávidos pela sua associação, pois as escrituras dizem que um breve momento de verdadeira associação com um maha-bhagavata como ele pode nos promover à perfeição máxima da vida! Isso significa que não há necessidade de nos preocuparmos tanto com a quantidade de textos a serem lidos. Devemos, antes disso, observar a qualidade do nosso estado de consciência, pois a leitura feita de forma profunda – mesmo que seja breve – pode desencadear em nós uma transformação interna maravilhosa!
"Em meus livros a filosofia da consciência de Krishna é completamente explicada, de modo que, se houver algo que você não entenda simplesmente leia novamente e repetidas vezes. Por ler diariamente este conhecimento será revelado a você... A melhor maneira de me agradar é lendo meus livros e seguindo as instruções contidas neles”, escreveu ele numa carta em novembro de 74. A literatura de Srila Prabhupada é tão mágica que é capaz de nos oferecer frescor inesgotável e vida espiritual abundante a cada leitura. Só nos resta, portanto, nos aproximarmos dela com uma atitude honesta de oração e com a devida reverência e  humildade. Para terminar, podemos “ruminar” um texto de Srila Prabhupada, quando, ao retornar à Vrindavana já com a saúde precária em maio de 1977, ele disse num tom profundo e grave: "Não há mais nada de novo para ser dito. Tudo que tinha a dizer já está dito em meus livros. Agora procurem compreendê-los e continuem seus esforços".

São Luis do Maranhão, 29/11/2012

sábado, 10 de novembro de 2012

Serei eu um membro da Igreja dos “Mornos”?


Não, não digitei errado. Não estou me referindo aos Mórmons, aqueles da “Igreja de Jesus Cristo dos santos dos últimos dias”. Estou mesmo falando dos mornos – aqueles que não são nem quentes, nem frios. Na Sagrada Bíblia (Apocalipse 3.15-16), o Senhor Krishna (por que não?) fala deles: “Conheço tuas obras: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Mas, porque és morno, estou para vomitar-te de minha boca”. Portanto, sejamos mais radicais! (etimologicamente falando, é claro). Radical significa firmar-se nas raízes, sem convicções epidérmicas. Significa solidez na postura, na decisão tomada. Radicalidade é uma grande virtude, a virtude de romper com as próprias barreiras e dirigir o olhar para outras possibilidades, mas agarrado às raízes. E o tal do “caminho do meio”? Não confundir caminho do meio com caminho da mediocridade. Limite sim. Mas, será que o limite está sempre exatamente no meio? O grande sábio Confúcio vem em nosso socorro: “Eu sei porque o meio-termo não é seguido. O homem inteligente ultrapassa-o, o medíocre fica aquém”.
Seria um “morno” um medíocre? Aquele que, mesmo entendendo a importância da vida espiritual (e até se proponha a segui-la), acaba recuando diante dos mínimos obstáculos? Seria aquele que é carente de convicção, de determinação, de firmeza? Ou ainda aquele que, mesmo sendo adepto de algumas práticas devocionais, é apático demais para transpor as dificuldades do dia-dia, pois, de fato, não coloca o coração em suas atividades?
Srila Prabhupada disse que a vida espiritual é uma declaração de guerra contra maya. Assim sendo, talvez o morno se enquadre na categoria daquele que não tem suficiente coragem de assumir esta batalha, que não odeia o próprio pecado dentro dele. Quanto a isso, podemos recorrer ao Sri Upadesamrita, onde Srila Rupa Gosvami prevê que uma das nossas mais difíceis batalhas pessoais é certamente contra a nossa tendência ofensiva de cantar a japa ou ler os livros de Srila Prabhupada de forma mecânica (niyama-agraha). Um praticante mecânico é certamente aquele que carece de fervor e, portanto, é morno. Desse modo, suas práticas espirituais são fracas demais para conquistar seus inimigos internos.
Não é difícil reconhecer quando a “mornice” ganha terreno dentro de nós. Nesse momento, surge a apatia, a desmotivação, o descontrole dos sentidos e a empatia ao modo de vida materialista – que é a soma de tudo isso. Mas, quando somos socorridos pelo "fervor devocional" isso não pode acontecer, pois ele vem para nos lembrar de que nada é mais prazeroso do que as discussões filosóficas transcendentais entre devotos, nada é mais interessante do que o estudo detalhado dos livros de Srila Prabhupada, nada é mais gratificante do que uma participação entusiasta nos kirtanas e programas espirituais!
Outra característica da “mornice” é que ela faz com que suas vítimas prefiram falar mais de si mesmo do que trocar experiências verdadeiramente transcendentais de vida. Assim, nas “Igrejas dos Mornos”, as famílias Vaishnavas parecem mais um grupo de estranhos, onde irmãos, sobrinhos e tios espirituais mal cruzam suas histórias, e onde o sentido divino da família maior de Srila Prabhupada é infelizmente substituído por divisões, exclusões e discriminações que podem chegar a patamares inaceitáveis. Quando a “mornice” sobrepõe o “fervor devocional”, ela vem para impedir que o devoto transforme as informações das escrituras em conhecimento prático e experiências geradoras de amor e confiança e, consequentemente, em entusiasmo. Assim, os mornos são, em sua maioria, repetidores de informações – uma massa que teme a arte da crítica saudável, da autocrítica e da dúvida, e, portanto, mal interpretam aqueles que gostam de pensar. Ela, a “mornice”, nos faz viver ansiosos, estressados, deprimidos e até cria condições para o surgimento de doenças emocionais, típicas de não-devotos. Mas, quando, pela graça do guru e de Krishna, o fervor devocional se impõe sobre ela, acompanhado dele vem o desapego, o controle da mente, a lembrança dos maravilhosos exemplos dos acharyas do passado, a meditação nas lilas de Srila Prabhupada e nas suas instruções infalíveis e espiritualmente revigorantes.
“Devia ter amado mais, ter chorado mais (...) devia ter arriscado mais e até errado mais”.
(Manaus, AM, 10/11/2012)

sábado, 3 de novembro de 2012

“Sejamos adeptos do ócio!”

Já havia ouvido falar sobre a importância do ócio na vida do indivíduo. Ao pesquisar me deparei com alguns sinônimos, tais como “repouso, quietação e lazer”, que podem ser considerados positivos e sob a influência da bondade; enquanto outros, como “preguiça, indolência, moleza”, são certamente negativos e inspirados pela ignorância. Entendo que estes diferentes significados de ócio se embolam de tal maneira que, dependendo do contexto, pessoas moles e indolentes podem ser confundidas como estando “na bondade”, enquanto outras, quietas e em repouso, interpretadas como estando “na ignorância”, etc.
De qualquer modo, a palavra ócio tem seu lado bastante nobre – pelo menos em sua origem no latim –, pois significa “o tempo ocupado com coisas que realmente importam”. Por outro lado, a palavra negócio, que vem também do latim negotium, serve para indicar “as ocupações com coisas que negam o valor da vida”, o que, talvez, são chamadas por nós como “trabalhos fruitivos”. Ócio é, portanto, o tempo gasto na autorrealização espiritual, o tempo precioso em que podemos ficar efetivamente por conta de nós mesmos. Por isso, entre os gregos e os romanos, o ócio era colocado na parte superior da escala de valores, o que nos leva a deduzir que um verdadeiro brahmana deve ser adepto ao ócio, ou seja, de uma vida espiritualmente contemplativa, voltada a smaranam, reflexão – prática esta sob a influência da bondade, e que ajuda o indivíduo a reduzir os riscos da vida espiritual.
Lembra que, no início deste texto, citamos o “lazer” como uma das traduções de ócio? Essa tradução nos remete à Gita, quando Krishna explica que se pode controlar a mente “regulando o comer, o dormir, o trabalhar e o recrear (vihara)”. “Assim”, acrescenta o Senhor, “pode-se mitigar as dores da existência material” (G. 6.17). Este conceito de equilibrar o trabalho com o lazer apresentado por Krishna combina totalmente com o conceito de ócio positivo. Não há como negar – inclusive dentro do serviço devocional – que as pausas são momentos ativos e precisamos delas para nos revigorar, para nos descontrair, para respirar melhor. Quanto a isso, podemos citar a música como bom exemplo: ela tem compasso, cresce, diminui, abre espaços para o improviso e também tem suas pausas, as quais não devem ser entendidas meramente como ausência de som, mas como um elemento genuinamente criativo, que permite a respiração rítmica da música. Para não falar do nosso corpo que faz pausa entre o inspirar e o expirar, os universos também têm seu ritmo.  Depois de serem criados, mantidos e aniquilados há uma pausa na engrenagem cósmica e eles se tornam imanifestos por um período. A ideia é que a pausa é absolutamente natural e sagrada e, por isso, o ciclo dos dias e das noites tem orientado as pessoas tanto ao longo dos milênios quanto no dia-dia. Temos uma necessidade vital de interrompermos nossas atividades e tomarmos fôlego para, assim, restaurar nossas forças, acalmarmos a mente e desfrutarmos mais do tempo, o que nos dá plena disposição para gerar novas forças e reiniciarmos novas atividades. Portanto, no contexto da condição humana, trabalho e folga se completam e um ajuda a recompor o outro.
Antes que alguém pergunte, é claro que eu concordo com a importância de se fazer algo prático e produtivo, mas o dia não tem vinte e quatro horas? Ou seja, se formos organizados, há tempo de sobra para, diariamente, deixar que o ócio faça parte de nossa vida. Este tempo é o nosso sadhana, nossas práticas devocionais, especialmente as nossas duas horas diárias da japa, que é o que realmente importa.
Não tenho medo de me confessar: às vezes, canto japa sem exercer a menor pressão sobre mim, sem tentar obstinadamente ouvir cada sílaba do mantra, sem tentar não pensar em nada. E o interessante nisso é que sinto que, em certos momentos, isso me faz muito bem. Cantar caminhando na beira da praia e se deliciando com a sensação agradável que a água produz no contato com o corpo é um tipo de ócio que me faz muito bem, ou me sentar na varanda de Vrajabhumi e esquecer o relógio e mergulhar na leitura do Sri Chaitanya Charitamrta (talvez seja mais ou menos isso que Krishna quer dizer com “inação na ação”).
Esse tempo transcendentalmente ocioso, quando gasto com leituras devocionais e com o canto do santo nome, nos leva a ponderar e rever conceitos. Portanto, esse tempo é mais sagrado e nunca deve ser visto como perdido, pois de que nos adiantaria caminhar rapidamente, mas pelo caminho errado?

(Shantipur Escola, Visconde Mauá, MG, 03/11/2012)

domingo, 21 de outubro de 2012

"E precisamos todos rejuvenescer...".

Você está satisfeito com a qualidade da sua vida espiritual? Sim? Então, tome muito cuidado...

É claro que, por um lado, é importante sentirmos certa satisfação. Afinal, um devoto ou uma devota que conseguiu se livrar do complicado modo da paixão e se fixou no serviço devocional experimenta verdadeiro ruci, ou sabor espiritual em suas atividades. Mas fomos advertidos também da manifestação sutil e condicionante do modo da bondade: o sentimento de satisfação que dá a sensação de conclusão, encerramento, término. Aquela satisfação que não deixa margem para o prosseguimento. Aquela que limita, amortece, engessa. Por isso, o grande escritor e poeta Guimarães Rosa nos cutuca: “o animal satisfeito dorme” – uma provocação altamente cabível.
Um bom livro não é aquele que não queremos que ele acabe? Lembro-me claramente que isso ocorreu comigo quando eu lia o último volume da biografia de Srila Prabhupada. Eu fazia de tudo para não terminar. Eu estava satisfeito com a leitura? Plenamente satisfeito! Mas eu queria mais. Essa é a qualidade da satisfação transcendental. Me lembro também que quando o livro chegou ao fim deixei-o apoiado no meu colo ainda por muito tempo e, cheio de satisfação, fiquei perdido em devaneios espirituais.
Um dos versos que considero dos mais impressionantes e intrigantes é a oração da Rainha Kunti: “Que venham as calamidades!”. Como assim?...
Essa espantosa afirmação dessa maravilhosa devota de Krishna serve para corroborar também a ideia de que a insatisfação é bem-vinda. Definitivamente, não podemos nos render à sedução do repouso e deixar a acomodação engessar a nossa vida espiritual. Portanto, o sentimento de insatisfação pode ser um dos melhores motivos para sairmos da nossa zona de conforto. Em outras palavras, é uma grande misericórdia nos sentirmos desconfortáveis em nossa pequenez. Como já dizia Belchior: “E precisamos todos rejuvenescer”. É claro que materialmente falando isso é impossível. O corpo material inevitavelmente irá envelhecer e não há o que fazer para determos isso. Mas, no campo espiritual, diferente da vida corpórea, podemos sempre rejuvenescer. Isso é vida espiritual (bhavanti hrt-karna rasayana kathah).
Materialmente falando, é um fato que quanto mais vivemos, mais velho ficamos. Mais, quem pratica a vida espiritual tem uma sensação completamente diferente. Parece loucura, mas, se usarmos o fator tempo como medida, para um devoto, o mais velho dele está no passado e não no presente. Como assim? Isso ocorre porque a pessoa em consciência de Krishna está sempre e cada vez mais se surpreendendo positivamente. Desse modo, a cada período, um devoto que vive isso possui cada vez mais qualidade na sua vida espiritual. É como se ele sempre se tornasse uma nova edição dele mesmo – uma edição revista e muitas vezes até ampliada.

(Ashram Vrajabhumi, Teresópolis)

terça-feira, 16 de outubro de 2012

“Tempo – um dos mais escassos artigos de luxo desta era” ou “Agarre o seu dia antes que este se evapore”.

Nesta era de Kali, conseguir tempo para nós mesmos tem se tornado um dos mais escassos e valiosos artigos de luxo. A impressão que fica é que, se nada fizermos para evitar, a velocidade da nossa vida e do nosso mundo só irá aumentar. Talvez seja por isso que as pessoas dizem, “tempo é dinheiro”, no sentido de que ele é valioso demais para ser desperdiçado.
Qual é o conceito Vaishnava de tempo e como ele pode beneficiar uma pessoa?...
Assim como a própria vida, para o Vaishnava o tempo não é uma mercadoria, mas uma completa dádiva, pois ao se fazer uso consciente dele, além de proporcionar avanço espiritual, ele produzirá também alegria e entusiasmo – os mais poderosos antídotos contra o medo, o desânimo e tantas outras armadilhas mentais.
Assim, mesmo em meio às pressões impostas pelos tempos modernos, temos como, através do sadhana-bhakti, perseguir o nosso próprio tempo – que é o tempo que oferecemos para Krishna – pois, sem reservarmos tempo para Ele, não podemos dizer que temos tempo para nós mesmos, quando nossa vida perde o valor, o sentido.
Sem romantismo, o Vaishnava não acredita que os problemas do mundo seriam sanados simplesmente por desacelerar o fluxo natural das coisas. Nem pensa que a solução estaria num retorno generalizado à lentidão. Para ele, a solução é, de acordo com a situação, encontrar o momento certo para cada coisa. Ou melhor, a solução está em acordar cedo e cantar uma boa japa, pois ele sabe que somente assim ele conseguirá agarrar o seu dia antes que este se evapore. Não se trata de escapar das outras atividades, mas é a maneira de criarmos um escudo protetor contra a banalização e limitação das nossas atividades, uma maneira de escaparmos da roda de hamster.
Para o Vaishnava, o tempo é muito mais que uma sequência de datas e compromissos, muito mais que a rígida e implacável ampulheta da vida. Ele é misericórdia divina! Quão grande é a genialidade de Krishna que bondosamente cortou o tempo eterno em fatias, a que damos os nomes de dias, anos, etc.! Por que Ele fez isso? Ora, porque vinte e quatro horas são suficientes para cansarmos da vida. Aí vem a noite, o repouso, e o dia seguinte começa novinho em folha. E o que dizer de doze meses? Definitivamente, eles são mais do que suficiente para entregarmos os pontos e nos refugiarmos em Krishna, quando ganhamos novas chances, novas forças, novas esperanças.
Definitivamente não podemos permanecer o tempo todo vivendo sob a pressão do tempo e da obrigação. Portanto, para que o tempo seja mais valorizado e observado, Srila Prabhupada criou os Ashrams, pois, fora deles, fica muito difícil configurar o curso dos nossos dias de modo a viver intensamente os momentos sagrados. De fato, as práticas devocionais de um Ashram nos oferecem reais e totais possibilidades de imergirmos na espiritualidade, de cultivarmos nossa relação amorosa com Krishna, que está não somente ali no altar belamente decorado, mas também Se manifesta no ambiente natural do campo. Não há dúvidas de que os Ashrams podem nos ajudar anos retirar da influência do fator tempo, pois, quando dedicado à japa, aos bhajans, à leitura devocional, à adoração, o tempo assume o papel de um grande presente de Deus e pode – paradoxalmente – nos transferir à eternidade. Caso contrário, sem nos ocuparmos devidamente no serviço a Krishna, sentimos o tempo escorrer pelos dedos.
No Ashram, estando despertos na madrugada, durante o brahma-muhurta, podemos nos deleitar com uma atmosfera única, que, ao ser bem aproveitada, nos leva à uma japa altamente contemplativa. E, mesmo que não consigamos prestar atenção a cada uma das palavras do maha-mantra, podemos vislumbrar grandes sensações, como a liberdade da mente. Na atmosfera sagrada do Ashram nos sentimos confortavelmente acolhidos por Krishna e percebemos mais nitidamente a misericórdia de Srila Prabhupada!
É uma grande lástima que a maioria das pessoas não possa viver como nós, assim como também não podemos aceitar viver como elas. A conclusão é que devemos nos organizar o melhor possível para que aqueles que nos visitam possam pelo menos observar o ritmo do Ashram e assim constatar que, infelizmente, a sociedade moderna tem levado uma vida antinatural e arriscada, pois, ao trocar o dia pela noite, pode-se pagar um preço muito caro: pode-se perder-se de si mesmo...

“Nascendo e se pondo, o Sol diminui a duração de vida de todos, Exceto daquele que utiliza o tempo discutindo tópicos sobre a excelente Personalidade de Deus” (Bhag. 3.17.17).

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

"O que é um devoto? (parte 2) ou “Um exemplo vivo dos ensinamentos de Srila Prabhupada!”.

Ser devoto significa não se sentir a causa do próprio avanço espiritual e muito menos culpar alguém por seu regresso. Nem significa manifestar somente desejos imaculados. Ou seja, a mente de um devoto pode produzir pensamentos e desejos indesejáveis, mas ele a observa com atenção e exercita constantemente o seu gerenciamento para, assim, poder ter controle sobre suas emoções.
Um devoto não é perito em resolver unicamente os problemas externos, mas dá também total atenção aos internos. Não significa que ele está disposto unicamente a ajudar aos outros, mas é também humilde a ponto de pedir ajuda deles. Ele é sempre transparente e estabelece relacionamentos verdadeiramente confiáveis, sabe em quem confiar e se comporta de modo a ser também absolutamente confiável, pois é muito consciente da importância de ser uma excelente associação para os outros. Entendendo que é possível avançar em conhecimento e prática a cada dia e sempre, sua vida gira em torno de cultivar a veracidade, de desenvolver gestos, atitudes e hábitos devocionais. Com isso, ele nunca se lamenta, nem deseja nada materialmente, e substitui a propensão a criticar pela propensão a elogiar. Mas tudo isso são características secundárias externas do devoto. Sua principal característica, e de onde surgem naturalmente as outras, é que sua meta está claramente definida: tornar-se um exemplo vivo dos ensinamentos de Srila Prabhupada! Assumindo para si a responsabilidade de representá-lo da maneira mais impecável possível, ele não apenas é adornado com belíssimas e profundas qualidades devocionais, mas contribui na perpetuação das glórias imensuráveis de Sua Divina Graça!

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O que é um devoto? (Parte 1)

Ser um devoto não quer dizer ser impecavelmente perfeito, acertar sempre, manifestar o máximo de excelência em todos os campos de atuação. Muito menos, nunca falhar, não cometer o menor erro, não ter nenhum momento de fragilidade, não recuar, não chorar. O devoto chora, mas não se lamenta, pois usa sua lágrima como combustível que alimenta o fogo do desejo de reconstruir sua personalidade devocional. O devoto também erra, mas faz de seu erro uma oportunidade de cultivar humildade verdadeira e, assim, não cria máscaras para se esconder atrás delas.
Ser devoto não significa ser simplesmente todo-poderoso e, por conta própria, cruzar qualquer barreira ou superar qualquer obstáculo que a vida lhe impuser. Diante da poderosa energia material o devoto admite sua pequenez e fragilidade. Assim, para se livrar da repetição dos erros, ele usa os possíveis fracassos do dia-dia para corrigir rotas e melhorar o seu desempenho.
Quando tudo se encaminha bem, o devoto é adepto da humildade e da simplicidade, mas, ao mesmo tempo, se mantém atento para as possíveis mudanças do tempo. Quando as coisas se tornam difíceis, ele é amante da gravidade e da introspecção, mas continua amigo da humildade e da simplicidade, pois sabe que elas são as raízes da paciência e da tolerância – qualidades imprescindíveis para quem se propõe a cruzar qualquer tempestade.
O devoto tem motivos de sobra para nunca desacreditar da vida espiritual, para nunca desistir ou perder a determinação, pois sua mente, purificada pelo santo nome, o ensinou a arte de destilar sabedoria dos momentos difíceis. Seu coração, suavizado por austeridades voluntárias, aprendeu a fazer escolhas, que não incluem apenas ganhos, mas implica principalmente em perdas conscientes.
Ser devoto significa entender que cada ser é um diamante infinitamente valioso, uma das obras-primas mais perfeitas de Krishna. Significa respeitar a individualidade de todos e saber que, mesmo tendo sido escrita com insegurança, frustração e falhas, toda vida é também ilustrada com parcelas de sinceridade, ousadia e sucesso. Para um devoto que entende que a vida que pulsa dentro dele – e, certamente, dentro de todos – é o próprio Krishna, como poderia ser diferente? Como ele poderia deixar de respeitar alguém – incluindo a si mesmo – se ele sabe que cada ser é um mundo maravilhoso a ser explorado, um diamante a ser lapidado, um jardim a ser cultivado? Ser devoto significa entender que só existimos porque Krishna existe, e que, assim como a alma dá vida ao corpo, Ele dá vida à alma.
Ser devoto não significa fazer parte de uma massa que teme a arte da crítica saudável, dissimula a dúvida, ou duvida de tudo e, quando mal interpreta os verdadeiros pensadores, tece críticas inescrupulosas. Ele aprende com a experiência alheia – não para repetir a dor dos que vieram antes, mas para seguir os passos das grandes almas do presente e do passado.
Um verdadeiro devoto está tão empenhado em proteger seu tesouro interior, obtido pela graça do guru, e tão ocupado em cuidar da sua trepadeira da devoção, que nunca vê motivos se deprimir ou perder o entusiasmo. Sua gratidão é tamanha que, mesmo quando é contrariado ou criticado, não sente a menor pena de si mesmo, pois se compara ao pobre garimpeiro que, depois de passar a vida toda removendo cascalhos, finalmente encontrou o maior de todos os diamantes!

sábado, 6 de outubro de 2012

"O maior espetáculo da existência" ou "A rendição a Krishna provocada pelo santo nome".

Já havia me programado. De manhãzinha eu sairia para caminhar na praia para cantar japa e na volta escreveria algo sobre o silêncio. Mal saio da porta principal do prédio, viro para a direita, e me deparo com dois rapazes dormindo em “camas” de caixas de papelão. Eram quase sete horas e a rua já estava movimentada e, apesar do forte barulho do caminhão que descarregava bebidas, dos latidos de dois cães que não se “bateram”, etc., eles desfrutavam da tranquilidade do seu “leito de papelão”. Como assim?...
Será que toda essa poluição sonora já está tão entranhada em suas mentes que nada os incomoda? Afinal, isso é bom?... É claro que não! Certamente, acostumar-se a condições sub-humanas e adaptar-se a situações tão precárias não pode ser um bom sinal, o que me leva a refletir, “Será que isso também não está ocorrendo comigo?”, “Será que o meu canto da japa, misturado com os barulhos interiores provocados pela mente agitada, não é um indício de que eu acabei me acostumando com uma péssima qualidade de japa?”, “Ou talvez tenha adaptado a mais importante prática espiritual diária à uma atividade mecânica e quase sem sentido?”, ou ainda: “Será que eu estou saindo realmente para cantar japa ou vou dar simplesmente um passeio na praia com a japa na mão?”. Oxalá o compassivo Krishna faça com que eu consiga ouvir os santos nomes e pare (ou pelo menos diminua) de ouvir meus barulhos interiores!...
Chego à praia e me deparo com pessoas se exercitando, levando seus animais de estimação para passear, praticando esportes, conversando, bebendo suas águas de coco... Ó meu Deus, já que me parece impossível esvaziar a cabeça de todos os pensamentos, palavras e imagens, de alguma forma meus ruídos internos precisam se transformar em sons mais neutros e pacíficos! E essa importante transformação é uma das maravilhas feita pelos santos nomes de Krishna, os quais, por si sós, nos ajudam efetivamente a lidar positivamente com nossas emoções, já que não há como acabar com elas.
"Como são construídas as cadeias dos nossos pensamentos, qual é a natureza deles, e como as emoções se transformam em frações de segundos?" Entender um pouco mais sobre o funcionamento da mente pode nos ajudar (a metapsicologia freudiana e os fenomenólogos de plantão que o digam), já que temos que transformar o nosso “sentir, pensar e desejar” material em “sentir, pensar e desejar” espiritual. O grau de complexidade de tudo isso é tamanho que só há uma conclusão: somente a misericórdia dos santos nomes pode nos salvar e nos ajudar a realizarmos o maior espetáculo da existência: a rendição a Krishna!  Caso contrário, como conseguiríamos (ao mergulhar em nossa memória) resgatar, em uma fração de segundos, informações capazes de se transformar em emoções puramente consciente de Krishna?  (Vale lembrar que em nossa memória existem bilhões de opções de informações mundanas). Como opera em nós uma enorme gama de milagres, o cantar é a mais perfeita demonstração do processo de bhakti! Pois é ele o responsável direto por nos dar smrti, a memória espiritual (Gita 15.15). Como poderia ser diferente? Sem a intervenção misericordiosa do santo nome de Krishna, como seria possível, no escuro de nossa mente, confeccionarmos pensamentos espirituais?... É claro que por muitas vezes experimentamos também algumas misérias mentais, mas isso não tem nada ver com Krishna, e sim com nossas impurezas.
A conclusão é: como desanimar na vida espiritual ou perder a esperança diante da grandeza da infinita misericórdia do santo nome de Krishna?

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Desentupindo nosso canal de comunicação com Krishna

Nos Ensinamentos da Rainha Kunti, Srila Prabhupada diz que ao visitarmos o Templo para termos darshan das Deidades devemos considerar nossa incapacidade de realmente Vê-Las em Sua plenitude, uma vez que nossos olhos - cobertos pelas "cataratas da ignorância" - não são capazes de acessar a verdadeira forma transcendental que está diante de nós. Portanto, melhor do que irmos ao Templo unicamente para vermos as Deidades seria nos aproximarmos Delas cientes de que seremos vistos por Elas, o que fará total diferença.
Isso me fez pensar que este mesmo conceito pode ser projetado em nossa prática diária da japa. Assim, ao invés de cantar os santos nomes no espírito de simplesmente nos dirigirmos a Krishna, de falarmos com Ele, podemos nos transformar em pedintes: "Ó Senhor, fale comigo! Se dirija misericordiosamente a mim e me agracie com Suas valiosas orientações!". Assim, quando a nossa japa se torna um encontro marcado entre nós e Ele, o momento em que praticamos se torna o mais especial e mais aguardado do dia! E o resultado disso é que o tempo se eleva da dimensão humana à dimensão divina, quando o nosso dia ganha uma qualidade completamente especial. Portanto, pelo menos no momento mágico da japa, esqueçamos o tempo!... Que besteira é esta de achar que podemos “possuí-lo”, “tomá-lo” ou “gastá-lo”? Você gostaria de se aproximar de alguém por algum motivo importante e perceber que esta pessoa está mais preocupada em c
onsultar o relógio do que em ouvi-la atentamente?

Durante o canto, somente uma boa qualidade de atitude mental  pode nos ajudar a entender se conseguimos realmente perceber a não-diferença entre Krishna e Seu santo nome.
O quanto acreditamos nisso? 
O quanto sentimos isso?
Estamos certos de que Ele está ali pessoalmente diante de nós?...
Tudo é uma questão de o quanto conseguimos desentupir o nosso canal de comunicação com Ele.